Toda vez que passava na frente da loja de roupas Casas Priba - Artefatos e de Tecidos Ltda., que ficava na esquina da rua José Bonifácio com a Senador Paulo Egídio no Centro de São Paulo, via na vitrine uma jaqueta de couro preta e ficava me imaginando usando-a. Só que não havia meio de fazer meu pai comprá-la. A amizade dele com o dono da loja, o polonês Seu Miguel, me fez ficar mais animado e na esperança de que enfim iria conseguir minha primeira jaqueta para colocar os 'buttons' do Black Sabbath, Scorpions e AC/DC que havia comprado na Woodstock Discos, famosa loja que também ficava na rua José Bonifácio. Por sinal, toda vez que ia na Woodstock eu passava pela Casas Priba e perguntava ao Seu Miguel se aquela jaqueta tinha sido vendida. A resposta era sempre a mesma: "Ainda não garoto, ela está esperando por você". A ansiedade só aumentava. Afinal, qual bom fã de Metal/Rock anda sem visual?
Quando houve o anúncio do show do Kiss no Brasil dei o ultimato, inventando algo que pudesse ter mais impacto: "Pai, se eu não for no show do Kiss com uma jaqueta de couro podem me bater. Não existe roqueiro que não tenha uma jaqueta preta e eu vi vários caras tomando uns tapas no show do Van Halen no ginásio do Ibirapuera. Só que o do Kiss será muito maior: no estádio do Morumbi!". Pronto. Consegui convencê-lo e saí todo contente da loja do Seu Miguel com a minha jaqueta de couro preta. Aquilo parecia minha armadura de super-herói e fazia-me sentir mais adulto e com uma postura mais 'rocker'. O problema é que com treze/quatorze anos de idade você pode ter a jaqueta de couro que quiser, mas ainda é muito novo para tomar as decisões sozinho. A partir daí uma segunda batalha se iniciava. Eu precisava convencer meus pais a me deixarem ir ao show do Kiss no estádio Cícero Pompeu de Toledo, o Morumbi.
O cenário nacional do Rock pesado era bem atrasado e para as bandas estrangeiras de Heavy Metal/Hard Rock o Brasil sequer existia no mapa. Após a vinda de nomes como Alice Cooper em 1974, Genesis em 1977, Queen em 1981 e Van Halen em janeiro de 1983, o primeiro megashow repleto de efeitos pirotécnicos que os brasileiros efetivamente iriam conferir seria justamente o do Kiss. Todos queriam ver de perto aquele circo. Seria uma aventura inesquecível e eu disparava meus argumentos todos os dias em casa. "Pai, sou fã do Kiss e vou no Morumbi toda semana com você nos jogos do São Paulo desde 1975! Portanto, estou acostumado a ir no estádio e show de Rock não tem briga de torcida". A resposta dele era simples: "Como você sabe se não tem perigo se nunca foi a um show em estádio?". Eu rebatia: "Você não lembra do Queen no Morumbi, que até você elogiou?". E ele respondia: "Elogiei o Queen e o Frank Sinatra quando tocaram em estádios, mas esse Kiss é diferente. Vamos ver...". A "batalha" para convencer o Dr. Batalha prosseguia...
As reportagens sensacionalistas antes da vinda do quarteto mascarado, que àquela altura contava com Paul Stanley, Vinnie Vincent, Eric Carr e Gene Simmons, só atrapalhavam. Fanáticos religiosos acusavam a banda de satanista, enquanto outros juravam que o Kiss "matava pintinhos" e sacrificava animais no palco. Isso sem contar nos comentários mirabolantes a respeito da língua de Gene Simmons e sobre a origem do nome do grupo. Todavia, para quem já era fã aquilo era ainda mais desafiador.A declaração de Gene Simmons chamando a todos para ver "a banda mais barulhenta de Rock do mundo" e o desafio de "quem não gostar é porque está velho" caiu como uma luva para nosso pequeno grupo de fãs de Rock/Metal do colégio Liceu Pasteur, entre os quais Stélio Neto, Marcelo Trevisan e Alexandre Campedelli. Nos unimos para tentar um jeito de organizar uma pequena
caravana rumo ao show. Posteriormente, meu primo João Claudio também se juntou a nós, enquanto Campedelli decidia se ia mesmo conosco. Porém, faltava "apenas" solucionar outro grande problema: como iríamos ao Morumbi? A solução foi dada pelo ex-funcionário do escritório do meu pai de apelido Totó, que disse que nos levaria ao show, assegurando aos pais e familiares daquela "caravana" que tomaria conta de todos. A única condição imposta pelo Totó foi proibir a ida do meu irmão Frederico, que estava com apenas dez anos de idade, pois ele temia algum problema com o juizado de menores e com a situação delicada de levar uma criança a
um megaevento. Apesar de bem novo, meu irmão também tinha sua jaqueta de couro preta. Engraçado foi que o próprio Totó entrou na nossa e comprou a sua jaqueta de couro na mesma Casas Priba, segundo ele "para não ficar tão fora do contexto dos roqueiros". Stélio, por sua vez, adquiriu uma camiseta do Tygers Of Pan Tang não sei onde, mas aquilo era algo inimaginável para a época.
A música I Love It Loud virou hit de rádio e o videoclipe passava com frequência na televisão em programas como "Som Pop" (TV Cultura), além de ter sido exibido com destaque no "Fantástico" (Rede Globo). Outras faixas de Creatures Of The Night, como Killer, War Machine, a intensa balada I Still Love You e a pesada faixa-título, também obtiveram boa receptividade do público, mas nada que pudesse rivalizar com o "fenômeno I Love It Loud". Todos sabiam cantar a entrada ('Eh, eh, eh, eh, yeah') e o refrão ("Loud, I Wanna Hear It Loud, Right Between The Eyes..."). Mesmo quem não gostava da banda e sequer tinha contato próximo com o Rock pesado inconscientemente sabia cantá-la.
O saldo final da "Creatures Of The Night / 10th Anniversary Tour" pode não ter sido dos melhores, mas os shows no Rio de Janeiro (Maracanã, 18 de junho) - recorde de público da banda com 130 mil presentes -, Belo Horizonte (Mineirão, dia 23) e São Paulo (Morumbi, dia 25) acabaram sendo os últimos com o quarteto usando as famosas maquiagens. Nossa pequena "caravana" de fãs estava lá pulando e agitando na cativa do Morumbi ao som de hinos como Detroit Rock City, Calling Dr. Love, Firehouse, I Want You, Cold Gin, God Of Thunder, Love Gun, Shout It Out Loud, Black Diamond e Rock And Roll All Nite. Cantamos todas as novas do Creatures Of The Night, da abertura do set com a faixa-título, passando por War Machine, a balada I Still Love You e o hino I Love It Loud, executado duas vezes (quinta música do set list após Cold Gin e no primeiro bis), fato até então inédito num show do Kiss. Ainda tomamos um susto quando "estourou" o canhão da bateria em formato de tanque de Guerra de Eric Carr (a cara de susto do Totó e o seu desabafo - "Puta que o pariu, onde vim parar?!" - resumem bem aquele momento); vibramos com o sangue artificial e as peripécias de Gene Simmons; a performance de palco energética de Paul Stanley e o solo à la Eddie Van Halen de Vinnie Vincent. No final, saímos de alma lavada.
Antes de voltar para casa fomos comer um lanche no New Lareira's, onde nosso "guardião" Totó havia sido garçom durante muitos anos até ir trabalhar no escritório de advocacia do meu pai. O assunto? Obviamente, o show do Kiss! Alguns reclamaram da qualidade de som, que realmente não foi das melhores, e do local distante que estávamos, mas aquilo que vimos foi impactante e marcou nossas vidas. Estivemos lá e era isso que importava, pois aquilo foi como a nossa independência. Pessoalmente achei a experiência muito diferente de ir ver um jogo de futebol no Morumbi. Há semelhanças, como a vibração d
a torcida na hora da entrada do time e no momento do gol, mas o ambiente ao redor e dentro do estádio num show é outro. Depois deste dia, toda vez que ia a um jogo do São Paulo eu lembrava do show do Kiss.
Outro documentário interessante foi "Quem Kiss Teve", dirigido por Tadeu Jungle (apresentador do programa "A Fábrica do Som"), Walter Silveira e Paulo Priolli, que foi apresentado pela primeira vez no "1º Festival Videobrasil" em agosto de 1983 e depois acabou passando na TV Cultura. O vídeo de pouco menos de 30 minutos mostrou o outro lado do evento, com entrevistas pra lá de curiosas com fãs, cambistas, policiais, camelôs e a de um vendedor ambulante que estava vendendo um "sanduíche de molho de calabresa". Outro entrevistado era um sujeito que estava vendendo um pão com mortadela aparentemente vistoso, mas que quando se abria o pão havia apenas metade de uma fatia de mortadela, justamente a que aparecia por fora. A banda também foi entrevistada no backstage, mas o documentário explorou mais o caos e o acaso que rondam um evento de massa.O fervor da estadia dos quatro mascarados no Brasil foi capaz de fazer o cenário nacional crescer. A partir daí vários espaços se abriram para a música pesada e os festivais de Rock se espalhavam por colégios, teatros e espaços cedidos pelas prefeituras. Dois anos após a passagem do Kiss, o festival "Rock In Rio" colocaria definitivamente o Brasil na rota dos grupos estrangeiros e seria outro marco da expansão da música pesada por aqui.
"Quem Kiss Teve" - Documentário, 1983.












