sábado, 20 de setembro de 2008

CROSSOVER TUPINIQUIM

SEPULTURA E RATOS DE PORÃO: A PRIMEIRA VEZ NINGUÉM ESQUECE...

"Você vai lá no Mambembe filmar o show hoje?", perguntou-me o amigo Marcelo Fanin, ex-baixista e meu companheiro na banda Cizânia (foto), querendo saber se iríamos no Teatro Mambembe como fazíamos religiosamente toda semana. "Lógico", respondi prontamente, sem perceber que estávamos prestes a presenciar um evento histórico. Sim, eu sei, já falei sobre este assunto no especial "1987: O ano da consolidação do Metal brasileiro", publicado na edição #107 da revista Roadie Crew, mas aquele primeiro encontro real entre o Metal e o Punk/Hardcore em São Paulo é digno de registro. Portanto, vale um revival.

A grande maioria dos que compareceram ao "Maquinaria Rock Fest", realizado a 17 de maio último, pode nem ter noção de que o festival que reuniu nomes como Sepultura, Ratos de Porão, Korzus, Threat, Matanza, Biohazard, Suicidal Tendencies, Misfits, Tristania e outras, só foi possível por causa daquela fusão ocorrida em 1987 com a união do Sepultura e Ratos de Porão. E olha que as datas disponíveis para Metal no Mambembe nem eram sextas ou sábados à noite e sim às segundas ou terças!

A parceria do Sepultura com o Ratos de Porão, fato que se tornou corriqueiro anos depois, era algo inconcebível em São Paulo. João Gordo que o diga... Até que ele declarasse abertamente sua paixão pela vertente mais extrema do Metal e criar laços estreitos de amizades no meio, foi ignorado e muitas vezes hostilizado. Vários ficavam até com receio de se aproximar dele. Mas abrir caminhos, quebrar barreiras e enfrentar as adversidades - sempre com bom humor - foi algo que ele tirou de letra. Sofreu, mas levou numa boa.

No Rio de Janeiro, graças à Dorsal Atlântica, a coisa era diferente. A própria Dorsal tinha uma alma Hardcore em seu som e o público naturalmente herdou (ou "roubou", como diria o guitarrista/vocalista Carlos Lopes) as tradições dos shows Punk. Lá no Rio, à época do também saudoso Caverna 2, as rodas de pogo eram comuns. E o "bater correntes" no chão da "turma do fundão" na pista do Caverna era algo chocante para os forasteiros. Pude ver isso de perto, mas vou contar esta história numa próxima. O problema lá no Rio era outro: Zona Sul X Zona Norte (Era?!...).

Em São Paulo e na região do ABC havia um grande abismo na relação do Punk com o Metal. Era uma coisa teoricamente "perigosa". Musicalmente não, mas socialmente sim (se é que podemos considerar ser "contra" o próximo algo social). Some-se isso ao fato de que os "inimigos" de ambos eram os Carecas. Só que eu o Fanin já estávamos cansados de ouvir que os skinheads (Carecas do ABC, do Subúrbio, White Powers) iriam invadir o local e quebrar todo mundo que estivesse lá. Por sinal, nem estávamos pensando nisso. E, convenhamos, quem liga para boatos é tolo demais ou é daquele que acredita na própria mentira que inventou. Como nunca demos bola para essas besteiras e em tempo algum havíamos tido problemas desta ordem em shows fomos na maior alegria e descontração. Eu até tinha uns conhecidos de cabeça raspada que eram temidos por alguns covardes, mas jamais fui a um show ou a algo relacionado com o Rock/Heavy Metal pensando nisso. Talvez por isto nunca tive problemas e até fiz algumas amizades, digamos, "indesejadas" por alguns. Eu estava (e estou) nesta pela música. Única e exclusivamente pela música!

Mas eu tinha uma preocupação: a bateria da minha velha câmera Panasonic VHS, que agora é peça de museu. Só que aquele trambolho pesado tinha me feito entrar no circuito do Metal, algo que eu sempre desejei. Claro que não fiquei parado, só ansiando por algo. Fui atrás e o primeiro passo foi partir para as filmagens de shows e a edição de fanzines. Nunca quis ser músico e a bateria era apenas mais uma ação. Eu queria estar no meio, queria participar, reportar e ajudar aquilo tudo crescer.

O próprio nome do primeiro zine que editei ao lado dos irmãos Tabuso (Caio e Conrado), DeathCore, prova que jamais tive problema com o Crossover. Alguns anos antes, quem queria ouvir algo mais extremo recorria naturalmente ao Hardcore finlandês (o HxCx americano não era tão bem visto assim, como o Punk Jaime "Alemão" - que morava no mesmo bairro e era amigo do Fanin - costumava me dizer). Como o Thrash e o Death Metal ainda estavam em formação e o som dos grupos que surgiam eram leves demais, vibrávamos ouvindo Lama, Rattus, Kaaos, Riistetyt, Terveet Kadet e tudo que o Jaime indicava...

Mesmo com esta ligação direta e a afinidade mútua na musicalidade do Punk e do Metal, ninguém ousava "invadir" o espaço de outro. O simples fato de ter cabelo comprido e usar uma camisa do Riistetyt (que me foi dada pelo Jaime) era
motivo de espanto no meio do Metal. Engraçado que muito tempo depois passei esta camisa para o vocalista do Goatlove, Roger Lombardi (foto), meu ex-companheiro nas bandas Midnight e Sunseth Midnight. Roger canta como Andrew Eldritch (Sisters Of Mercy), mas é tão fã de HxCx e Punk que fez e faz questão de usá-la em fotos promocionais.

Esse lance todo de Metal X Punk era tão radical, "xiita" (como Carlos Lopes da Dorsal costuma falar) e confuso que o Caio Tabuso do DeathCore Zine certa vez foi proibido de entrar no escritório da revista Rock Brigade simplesmente porque estava com a camisa do Sex Pistols. Se eu ou o Caio fomos ingênuos ou contestadores não importa. Aquilo foi ridículo, mas o establishment (como diria o cronista esportivo Milton Neves) era assim. Da mesma forma causava estranheza ver um Punk moicano usando uma camiseta do Motörhead ou do AC/DC. Mas não estávamos nem aí. Ouvíamos o HxCx finlandês, alemão e continuávamos gravando fitas do Discharge, Stiff Little Fingers, The Exploited, English Dogs, Sham 69, Minor Threat, Varukers... Gravando, comprando e lendo todos os fanzines Punk. E nada batia os Zines Punk!

Na ida ao Mambembe Fanin (foto) e eu até chegamos a comentar o que poderia acontecer se houvesse o encontro entre fãs de Punk, Metal e os Skins. Como coloquei na revista Roadie Crew, aquela mensagem do hino United Forces, gravado pelo S.O.D. no álbum Speak English Or Die em 1985, enfim seria colocada à prova.

A situação era realmente complicada, mas descemos na estação
Paraíso e fui na boa carregando aquela malinha Tiger fajuta com a câmera Panasonic. A preocupação logo deu lugar ao papo sobre música. "Será que o Sepultura vai tocar aquele som do Demo-Tape que você tem?", questionou Fanin a respeito da música The Past Reborns The Storms (http://www.youtube.com/watch?v=viAOdgmGOPI), que depois ficou conhecida como From The Past Comes The Storm e saiu no disco que o Sepultura estava para lançar, o excelente Schizophrenia.

O Ratos de Porão do João Gordo, Jabá (foto), Jão e Spaguetti era cultuado por muitos e odiado por tantos outros. Na época a banda já escancarava sua influência de Metal, iniciada com Descanse Em Paz (1986) e efetivada com Cada Dia Mais Sujo e Agressivo (1987). Duvido que você nunca ouviu alguém dizer que uma banda Punk teve sua "fase Metal".

O Sepultura e o Ratos de Porão estavam interessados em quebrar barreiras e fazer valer o ditado de que "a união faz a força". Na realidade, primeiramente por amizade. João Gordo e o Sepultura se encontraram em 1986, em Belo Horizonte (MG), quando o vocalista do RxDxPx viajou para ver os shows do Venom e Exciter, com abertura do próprio grupo dos irmãos Cavalera, Max e Igor. Posteriormente, integrantes do Sepultura apareceram entre os convidados especiais do terceiro 'full lenght' do RxDxPx, Cada Dia Mais Sujo e Agressivo.

"Tinha um puta cagaço da carecada invadir, matar todo mundo e tal, mas o show foi do caralho. Foi um marco o heavy metal e o punk terem se juntado em São Paulo. A partir dali, uma banda influenciou a outra e a amizade que ficou é muito forte", Andreas Kisser para a revista Trip.
(http://revistatrip.uol.com.br/76/cd/home.htm)


Os shows foram absurdamente intensos, penso que um dos mais furiosos da carreira do Sepultura e do RxDxPx. Gordo inclusive fez questão de discursar sobre a possível invasão dos skins. Quem temeu, perdeu aquelas apresentações históricas. Acredite ou não, aquele show mudou a cara do Metal brasileiro. O sentimento de sair do Mambembe e falar "Eu vi isso acontecer" deu um outro sentido na vida de todos que compareceram.


Nenhuma briga ocorreu, mas no final do evento o proprietário da Woodstock Discos, Walcir Chalas, caminhou com boa parte do público até a estação do metrô Paraíso no melhor estilo "líder de gangue". Ele foi à frente como se fosse um investigador de Polícia. Até hoje ele vai falar que não carregava arma de fogo alguma, mas então se alguém plantou o boato, funcionou.

Voltamos para casa e eu logo fui ver o registro em vídeo. O som do VHS tinha ficado legal, mas a imagem estava meio escura, porque lá não tinha jeito. A iluminação era fraca mesmo. O Ayala fazia tudo que podia com o equipamento que tinha à disposição, mas quase sempre a imagem ficava escura. Só que eu preferia ver tudo preto e ainda ter isto em mãos. Dizem as más línguas que a fita original foi parar nas mãos do baterista do RxDxPx e nunca mais foi recuperada (muito embora existam sites com o DVD deste show do Ratos à venda). Mas eu e o Fanin temos isto na memória. Daqui ninguém tira estas lembranças e o "perigo" de ir ao show virou motivo de orgulho. Nós vimos o surgimento do genuíno "Crossover Tupiniquim".

Sites relacionados:
www.myspace.com/ratos
sepultura.uol.com.br

5 comentários:

  1. Bacana ler sobre esse assunto. Não tive uma "oportunidade" como essa, mas quando comecei meu fanatismo por Heavy Metal, ainda criança, me lembro exatamente dessa "rixa" medonha entre punk e metal.
    E lembro que passei a ouvir Ratos de Porão justamente por gostar de Sepultura e por ter lido sobre esse laço entre eles.

    Infelizmente eu não estava la, mas suas palavras me traz boas lembranças do "meio metal" que até hoje persiste em minha vida, hehehe.....

    ResponderExcluir
  2. Ratos e Sepultura, realmente um evento histórico. Pela primeira vez presenciamos "heavy" e "punk" juntos se preocupando exclusivamente em curtir um som, no entanto eventos como este sempre ajudam a refletir mais sobre o que realmente de fato importa para as pessoas que têm várias coisas em comum.
    João Gordo teve coragem e atitude e sua forte personalidade o ajudou a enfrentar vários obstáculos. Depois deste evento histórico, o Batalha e trabalhou numa CIA de Cinema e Vídeo, era Editor Chefe de Imagens e Redação, cobria eventos de shows e eu fazia uns bicos como auxiliar de câmera, e tive a surpreza de participar acredito que uma das primeiras entrevistas que o Ratos dava para TV, esta materia foi feita após um show no Dama Shock, e foi veiculado na TV Gazeta, parabéns ao Ratos de Porão, Sepultura e todos aqueles que de alguma maneira contribuiram pela fusão de vertentes em prol do mesmo objetivo. E se alguém tem dúvida que o Batalha alguma vez foi contra está enganado, pois além de ser testemunha tem muita banda ai que pode dizer o quanto ele ajudou tanto na divulgação como resenhas e coberturas de shows.
    Abraço!

    ResponderExcluir
  3. Muito boa a história. O mais interessante é a relação entre Ratos e Sepultura. Destaque também por não terem dado à mínima para os boatos dos "temidos" Skins, importando somente a música e o amor por aquilo se gosta!

    Parabéns Ricardo...
    Digno de apluasos!

    \o/

    \,,/

    ResponderExcluir
  4. Eu estava nesse show e a cada palavra profeciada pelo Batalha me fizeram relembrar e reviver esses momentos tensos, porém prazeirosos por ter a oportunidade de ter feito parte dessa história.

    ResponderExcluir
  5. Parabéns pelo belo relato. Até hoje eu guardo o cartaz de um dos primeiros shows q eles deram juntos em BH no Ginástico.

    ResponderExcluir